segunda-feira, 30 de setembro de 2013

ADOLESCÊNCIA NORMAL - Um estudo sobre a visão de ABERASTURY E CALLIGARIS.

ABERASTURY. (1981) ADOLESCÊNCIA NORMAL - UM ENFOQUE PSICANALÍTICO. ARTMED. PORTO ALEGRE.


A partir do olhar de Ana Freud sobre a adolescência, que considera “toda a comoção neste período da vida como sendo normal, assinalando também que seria anormal a presença de um equilíbrio estável durante este processo”, Aberastury denominou a “síndrome da adolescência normal”, que é perturbada e perturbadora para o mundo adulto. Mas é através desse desequilíbrio que o adolescente vai formar a sua identidade. “Por isso, o adolescente deve enfrentar o mundo dos adultos para o qual não está totalmente preparado, mas ,além disso, deve desprender-se de seu mundo infantil no qual e com o qual, na evolução normal, vivia cômoda e prazerosamente, em relação de dependência, com necessidades básicas satisfeitas e papéis claramente estabelecidos.” Página.9 e 10.

Lutos que precisam ser elaborados pelos adolescentes:

  1. O luto do corpo infantil;
  2. O luto pelo papel da identidade infantil;
  3. O luto pelos pais da infância;
  4. O luto pela bissexualidade infantil.


De acordo com Aberastury, estes lutos são perdas substanciais de personalidade e, algumas vezes, transitórias e fugazes, podem adquirir as características do luto patológico. Pois é o desequilíbrio causado pelos lutos mencionados que provocam a sua evolução e a formação de sua identidade. (...) Para os adultos, é difícil aceitar as flutuações de humor do adolescente sem se comover, já que isso o faz reviver as ansiedades básicas que tinham sido controladas até certo ponto. (...) Mas é através do processo de elaboração desses lutos que o adolescente recorre normalmente a manejos psicopáticos de atuação, que identificam a sua conduta. (...) É importante notar que o que “diferencia o adolescente normal do psicopata é que este persiste com intensidade no uso deste modo de comportamento.” Página 10.

“Estas mudanças, nas quais se perde a sua identidade de criança, implicam a busca de uma nova identidade, que vai se construindo num plano consciente e inconsciente. O adolescente não quer ser como determinados adultos, mas em troca, escolhe outros como ideais; vai se modificando lentamente e nenhuma precipitação interna ou externa favorece este trabalho. (...) “o luto pelo corpo é dupla: surgem características sexuais secundárias”, que são o aparecimento da menstruação nas meninas e o sêmen nos meninos, isso lhes impõem a determinação da sexualidade e o papel que lhes impõem a busca por um parceiro e a procriação. Página 14.

“Ocorre que também os pais vivem os lutos pelos filhos, precisam fazer o luto pelo corpo do filho pequeno, pela identidade de criança e pela sua relação de dependência infantil. Agora são julgados por seus filhos e, a rebeldia e o enfrentamento são mais dolorosos se o adulto não tem conscientes os seus problemas frente ao adolescente.” Página 15.

“O desprezo que o adolescente mostra frente ao adulto, é, em parte, uma defesa para aludir a depressão que lhe impõe o desprendimento de suas partes infantis, mas é também um juízo de valor que deve ser respeitado.” (...) “entretanto, esta dor é pouco percebida pelos pais, que costumam fechar-se numa atitude de ressentimento e reforço da autoridade, atitude que tona ainda mais difícil este processo.”. página 16.   

“O sofrimento, a contradição, a confusão, os transtornos são deste modo inevitáveis; podem ser transitórios, podem ser elaboráveis, mas devemos perguntar-nos se grande parte da sua dor não poderia ser suavizada mudando estruturas familiares e sociais.” Página 17.

Nesse embate com os pais, o adolescente pode “sofrer crises de susceptibilidade e de ciúmes, exige e precisa vigilância e dependência, mas sem transição surge nele uma rejeição ao contato com os pais e a necessidade de independência e de fugir deles”.(...) “A qualidade do processo de amadurecimento e crescimento dos primeiros anos, a estabilidade nos afetos, a soma de gratificações e frustrações e adaptação às exigências ambientais vão marcar a intensidade e a gravidade destes conflitos”. Página 18.

Outro exemplo de “incompreensão: ao adolescente se exige que defina a sua vocação e, ao mesmo tempo, lhe reprimem as primeiras tentativas desta vocação.” Página 20.
Por isso surge a exigência do direito de liberdade. De acordo como Aberastury, são três as exigências básicas de liberdade que apresenta o adolescente de ambos os sexos a seus pais:

  1. A liberdade nas saídas e horários;
  2. A liberdade de defender uma ideologia;
  3. A liberdade de viver um amor e um trabalho;

“A toda a adolescência tem, além da característica individual, as características do meio cultural, social e histórico desde o qual se manifesta, e o mundo em que vivemos nos exige mais do que nunca a busca do exercício da liberdade sem recorrer à violência para restringi-la. “ página 23.

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CALLIGARIS, Contardo. A Adolescência. São Paulo: Publifolha, 2000.

Cap. 1 – ELEMENTOS DE DEFINIÇÃO

A ADOLESCÊNCIA COMO MORATÓRIA (aqui entendida como retardar;  prazo de espera do adolescente para entrar na fase adulta)
A ADOLESCÊNCIA COMO REAÇÃO E REBELDIA
A ADOLESCÊNCIA IDEALIZADA
DURAÇÃO DA ADOLESCÊNCIA

Cap. 2 – “O QUE ELES ESPERAM DE MIM?”
INSEGURANÇA

O adolescente perde (ou, para crescer, renuncia) a segurança do amor que era garantido à criança, sem ganhar em troca outra forma de reconhecimento que lhe pareceria, nessa altura, devido.

Ao contrário, a maturação, que, para ele, é evidente, invasiva e destrutiva do que fazia sua graça de criança, é recusada, suspensa, negada. Talvez haja maturação, lhe dizem, mas ainda não é maturidade. Por conseqüência, ele não é mais nada, nem criança amada, nem adulto reconhecido. (p.24)

Entre criança que se foi e o adulto que ainda não chega, o espelho do adolescente é freqüentemente vazio. Podemos entender então como essa época da vida possa ser campeã em fragilidade de auto-estima, depressão e tentativas de suicídio.

Parado na frente do espelho, caçando as espinhas, medindo as novas formas de seu corpo, desejando e ojerizando seus novos pêlos ou seios, o adolescente vive a falta do olhar apaixonado que ele mereceria quando criança e a falta de palavras que o admitam como par na sociedade dos adultos. A insegurança se torna assim o traço próprio da adolescência. (p.25)

INTERPRETAR OS ADULTOS
Uma (?) interrogação do adolescente: qual seria o requisito para conquistar uma nova dose de amor dos adultos que ele estima ter perdido junto com a infância. Qual seria o gesto necessário para redirecionar o olhar adulto, que parece ter-se desviado. Qual atributo que garantiria, enfim, que ele fosse reconhecido entre ‘os grandes’.
Será que os próprios adultos sabem? Aparentemente não: a adolescência assume assim a tarefa de interpretar o desejo inconsciente (ou simplesmente escondido, esquecido) dos adultos. (p.26)
Em geral, o adolescente é ótimo intérprete do desejo dos adultos. Mas o próprio sucesso de suas interpretações produz fatalmente o desencontro entre adultos e adolescentes. Pois se estabelece um fantástico qüiproquó: o adolescente acaba eventualmente atuando, realizando um ideal que é mesmo algum desejo reprimido do adulto. Mas acontece que esse desejo não era reprimido pelo adulto por acaso. Se reprimiu, foi porque queria esquecê-lo. Por conseqüência, o adulto só pode negar a paternidade desse desejo e se aproveitar da situação para reprimi-lo ainda mais no adolescente. (p.27).
Não é difícil, portanto, ao adolescente interpretar o conformismo ou mesmo o ‘legalismo’ dos adultos como sintomas de um desejo que sonha mesmo com transgressões e infrações e que (supõe o adolescente) preferiria portanto um filho malandro a um ‘mauricinho babaca’.
O adolescente é levado inevitavelmente a descobrir a nostalgia  adulta de transgressão, ou melhor, de resistência às exigências antilibertárias do mundo. Ele ouve, atrás dos pedidos dos adultos, um ‘Faça o que eu desejo e não o que eu peço’.  (p.28)
O adulto de hoje (...) transmite a seu rebento a ambição de não repetir a vida e o status dos adultos que o engendraram. Ou seja, de desrespeitar suas origens, de não se conformar, de se destacar. (...) Apesar disso, tudo, os adultos devem também transmitir ao adolescente as regras da conformidade social, necessária para que ele não seja simplesmente inadaptado. Ora,essa transmissão inevitável de princípios morais e valores prezados pelo consenso social aparece ao adolescente como prova de covardia, do oportunismo e do fracasso dos adultos. Se eles prezam a exceção, porque se dobram a rogar a conformidade? A autoridade do adulto é assim minada, pois todos os valores positivos parecem emanar da resignação ao fracasso, de um desejo frustrado de rebeldia ou de unicidade.
Assim,  quanto mais o adulto tenta se constituir como autoridade moral, tanto mais se qualifica como hipócrita, porque a cultura ( e ele junto com ela) promove como ideal aquele que faz exceção à norma. (p.29)
Por fim, o adolescente é levado a concluir que o adulto quer dele revolta. E a repressão só confirma nele essa crença, apenas acrescentando a constatação de que o adulto repressor é hipócrita. (p.30).

Cap. 3 – “COMO CONSEGUIR QUE ME RECONHEÇAM E ADMITAM COMO ADULTO?”

O fato é que a adolescência é uma interpretação de sonhos adultos, produzida por uma moratória que força o adolescente a tentar descobrir o que os adultos querem dele. (...) As condutas adolescentes, em suma, são tão variadas quanto os sonhos e os desejos reprimidos dos adultos. Por isso elas parecem (e talvez sejam) todas transgressoras. No mínimo, transgridem a vontade explicita dos adultos. (p.33)
Os adolescentes são facilmente considerados uma ameaça à ordem estabelecida e à paz familiar.
Os adultos receiam as irrupções transgressivas que os adolescentes podem escolher como maneiras de se afirmar. Mas, sobretudo, os adultos sabem confusamente que o que há de mais transgressor nos adolescentes é a realização de um desejo dos adultos, que estes pretendiam reprimir e esquecer. Se a adolescência é uma patologia, ela é então uma patologia dos desejos de rebeldia reprimidos pelos adultos. (p.34)

(...) a adolescência não é só o conjunto das vidas dos adolescentes. É também uma imagem ou uma série de imagens que muito pesa sobre  a vida dos adolescentes. Eles transgridem para ser reconhecidos, e os adultos, para reconhecê-los, constroem visões da adolescência. Elas podem estar entre o sonho (afinal, o adolescente é a atuação de desejo dos adultos), o pesadelo (são desejos que estariam melhor esquecidos) e o espantalho (são desejos que talvez voltem para se vingar de quem os reprimiu).

Destaca cinco chaves de acesso à adolescência:

1ª) O ADOLESCENTE GREGÁRIO
O adolescente transforma assim sua faixa etária num grupo social, ou então num conglomerado de grupos sociais dos quais os adultos são excluídos e em que os adolescentes podem mutuamente se reconhecer como pares.
Contrariamente às crianças, os adolescentes em geral considerarão que sua verdadeira comunidade não é a família. Isso não é propriamente um efeito da freqüente desagregação dos núcleos familiares (esvaziamento das casas onde todos trabalham, ou separação dos pais). É o inverso: a crise da família revela de fato que os próprios adultos estão tomados por pruridos adolescentes, com ânsia de rebeldias e liberdades (entre elas, a liberdade das responsabilidades de uma família). Essas inquietações juvenis não os aproximam dos adolescentes, os quais esperam deles algo que não encontram em seus coetâneos.(mesma idade)
Nesse grupos, ele procura a ausência de moratória ou no mínimo, uma integração mais rápida e critérios de admissão claros, explícitos e praticáveis (à diferença do que acontece com a famosa ‘maturidade’ exigida pelos adultos). (p.36)
Os jovens gregários transgridem por se bastarem, ou seja, por se reconhecerem entre os pares, dispensando os adultos. (p.38)

2ª) O ADOLESCENTE DELINQÜENTE
(...) o adolescente tem dois caminhos possíveis e compatíveis para obter algum reconhecimento: fazer grupo e fazer estardalhaço, ou ‘besteiras’. Melhor ainda: fazer grupo e com o grupo fazer besteiras. Enfim, se associar para transgredir.
A transgressão tenta encenar o que os adolescentes acreditam ser um desejo recalcado adultos. Há o projeto de entregar como presente para os adultos um comportamento, um gesto, do qual eles teriam sido frustrados e, assim, de merecer uma medalha. (...) O erro dos adolescentes (erro em relação a sua própria estratégia) é pensar que para os adultos possa ser agradável encontrar uma encenação de seu próprio recalque. (p.41)
Eles imaginam que, como delinqüentes, serão amados por serem portadores de sonhos recalcados.
Tolerar não é uma opção, visto que o jovem atua justamente para levantar a repressão. A tolerância só o forçará a atuar com mais violência.
Os adolescentes, então, transgridem e os adultos reprimem. Por um lado, se os adultos reprimem preventivamente, impondo regras ao comportamento adolescente, eles afirmam a não-maturidade dos adolescentes. Em resposta, os adolescentes serão levados a procurar maneiras violentas de impor seu reconhecimento. Por outro lado, a repressão punitiva só manifesta ao adolescente que seu gesto não foi entendido como deveria, ou seja, como um pacote de presente cheio de ideais e desejos reprimidos dos adultos. O que também levará o adolescente a aumentar a dose de rebeldia. (p.43)
Na relação com os adultos (não só sua família), o adolescente, não conseguindo produzir respeito, prefere e consegue produzir medo. O medo é o equivalente físico, real, do que o respeito seria simbolicamente.
A prostituição adolescente com clientes adultos é um bom exemplo de uma maneira de forçar o reconhecimento, quase irônica: ‘Se este corpo não é desejável, por que pagam para tê-lo por um momento?’ (p.44)

3ª) O ADOLESCENTE TOXICÔMANO
Os adolescentes de hoje são os descendentes de uma geração que explicitamente ligou o uso das drogas a todos os sonhos de liberação e revolução (pessoal, sexual, social etc.) que ele agitou e subseqüentemente abandonou e recalcou. (p.45)
O que os adultos receiam, na visão do adolescente drogado, da maconha à heroína e ao crack? Fora os riscos para a saúde e o perigo de encarar conseqüências penais, há uma espécie de temor de que, no baseado ou na pedra, o adolescente encontre um objeto que satisfaça seu desejo, mate sua procura, acabe com a insatisfação. O medo, em suma, de que com a droga o adolescente, de repente, seja feliz. (p.46) (pensar a noção de desejo)
Ora -  na fantasia dos adultos e talvez de fato -, a droga seria o objeto que promete e  entrega uma satisfação acabada, mesmo que apenas momentânea. (...) Por isso a toxicomania talvez seja a transgressão mais preocupante, porque parece minar um pressuposto fundamental do pacto social vigente: a permanência da insatisfação. (p.47)
Não podemos renunciar à insatisfação que nos faz correr e que vitaliza o mundo. Nenhum objeto pode nos satisfazer, pois o que queremos não são coisas e posses, mas atrás delas – reconhecimento ou status. E nada pode extinguir nossa sede desses dois.
A droga é um objeto mortal. Não só porque pode matar o usuário, mas porque – tão grave quanto isso – pode matar seu desejo. (p.48) 

Reabilitação
A reabilitação, trazer alguém de volta da delinqüência, da droga ou da prostituição, é o contrário da infantilização: ela implica o reconhecimento de que quem se perdeu esteve em perigo de verdade.
É isso que almejam todas as condutas extremas da adolescência transgressora: convencer o outro de que a vida do adolescente não é nenhum limbo preparatório, ela está acontecendo de verdade, como a vida adulta. (p.49)

4ª) O ADOLESCENTE QUE SE ENFEIA
Pode ser que o ato de se enfeiar corresponda a uma recusa da sexualidade e, sobretudo, da desejabilidade como valor social.
Pode ser também que o adolescente se enfeie para se  proteger de um olhar que poderia não achá-lo desejável. (...) a feiúra é também uma espécie de exibicionismo escancarado, a proposta de um erotismo fora de norma, a promessa de uma armadilha sexual que não se preocupa em passar pelos ícones socialmente aceitos da desejabilidade.
O ‘piercing’ umbilical das garotas é exemplarmente tudo isso ao mesmo tempo. É uma lembrança do nenê de umbigo apenas cicatrizado. É uma curiosa distração lúdica no caminho do órgão genital, ou uma alusão a uma fechadura de castidade. É, sobretudo, uma maneira de chamar o olhar para o encontro permanente, não tão longe da vagina, de uma abertura do corpo com algo metálico e duro. (p.50)
Dos Garotos: (...) os centímetros de cueca expostos acima do cós baixado. Eles são uma recusa da sexualidade pela infantilização (a cueca à vista evoca uma história de cocô-xixi e de fraldas), uma maneira preventiva de se ridicularizar logo nos arredores dos órgão genitais, mas também a promessa de um permanente interesse com o que está nas cuecas ( a cueca fica, por assim dizer, sempre em riste).
No conjunto, as transgressões estéticas que parecem assinalar e prometer transgressões sexuais ou morais são esforços para encontrar algum conforto no olhar indignado ou assustado dos adultos. (...) Na verdade, a grande maioria dos adolescentes de cabelos ultraloiros, brincos, tatuagens e cara feia, caso se encontrassem a si mesmos numa rua escura, trocariam de calçada preocupados ou correriam para casa assustadíssimos. (p.51)

5ª) O ADOLESCENTE BARULHENTO

Em todas as suas tentativas de desafiar e provocar, o adolescente encontra uma dificuldade: por mais que invente maneiras de se enfeiar, de se distanciar do cânone estético e comportamental dos adultos, a cada vez, rapidamente, a cultura parece encontrar jeitos de idealizar essas maneiras, de transformá-las em comportamentos aceitos, até desejáveis e invejáveis. Ou seja, o adolescente descobre que sua rebeldia não pára de alimentar os ideais sociais dos adultos. (p.53)


MATERIAL INDICADO DAS AULAS DE PSICANÁLISE DO PROFESSOR DR. GERSON HEIDRICH

“OBSERVAÇÕES SOBRE O AMOR TRANSFERENCIAL” OBRAS COMPLETAS FREUD – VOL.XII

“Observações sobre o amor transferencial” (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise III) – Obras Completas Freud – Vol.XII

“Para um leigo instruído, as coisas que se relacionam com o amor são incomensuráveis; acham-se, por assim dizer, escritas numa página especial em que nenhum outro texto é tolerado. Se uma paciente enamorou-se de seu médico, parece a tal leigo que são possíveis apenas dois desfechos.” Página 177.

  1. Que paciente e médico se unam legalmente e permanentemente;
  2. Que médico e paciente se separam e abandonem o tratamento;
  3. Não obstante, ainda surge um terceiro desfecho, é que eles iniciem um relacionamento ilícito, mas essa opção fere a moralidade convencional.

A atração da paciente pelo analista configura-se como uma artimanha da resistência (mecanismo de defesa) para desviar a atenção do foco utilizando-se da transferência erótica. Este (a transferência) é um “fenômeno que ocorre constantemente e que é, como sabemos, um dos fundamentos da teoria psicanalítica.” (...) Desta forma, o analista não deve atribuir o enamoramento de sua paciente aos seus encantos pessoais. “de maneira que não tem nenhum motivo para orgulhar-se de ‘conquista’, como seria chamada fora da análise.” Página 178.

Freud não considerava nem um pouco sensato a postura de alguns médicos da época que preparavam frequentemente suas pacientes para a transferência erótica, pois dessa forma o analista/ médico “priva o fenômeno do elemento de espontaneidade que é tão convincente e cria para si próprio, no futuro, obstáculos difíceis de superar.” Página 179.

É importante ressaltar que “nenhum médico que experimente isto pela primeira vez achará fácil manter o controle sobre o tratamento analítico e livrar-se da ilusão de que o tratamento realmente chegou ao fim.”

Em dado momento, a paciente pode ficar “inteiramente sem compreensão interna (insight) e parece estar absorvida em seu amor.” Então a “resistência está começando a utilizar seu amor a fim de estorvar a continuação do tratamento, desviar todo o seu interesse do trabalho e colocar o analista em posição canhestra.” A intenção deste mecanismo é rebaixar o médico “ao nível de amante e em conquistar todas as outras vantagens prometidas, que são incidentais à satisfação do amor.” Página 180.

“Mas como deve o analista comportar-se a fim de não fracassar nessa situação, se estiver persuadido de que o tratamento deve ser levado avante, apesar desta transferência erótica, eque deve enfrenta-la com calma?”

Visto que não “deve ponderar que chegou sua vez de apresentar à mulher que o ama as exigências da moralidade social” ,pois “instigar a paciente a suprimir, renunciar ou sublimar seus instintos, no momento em que ela admitiu sua transferência erótica, seria, não uma maneira analítica de lidar com ele, mas uma maneira insensata. Seria exatamente como se, após invocar um espírito dos infernos, mediante astutos encantamentos, devêssemos manda-los de volta para baixo, sem lhes haver feito uma única pergunta.” Além disso, a paciente se sentirá humilhada e não deixará de se vingar por ela.” Página 181.

“Visto exigirmos estrita sinceridade de nosso pacientes, colocamos em perigo toda a nossa autoridade, se nos deixarmos ser por eles apanhados num desvio da verdade. (...) “não devemos abandonar a neutralidade para com a paciente, que adquirimos por manter controlada a contratransferência.” (...) “O tratamento deve ser levado a cabo na abstinência. Com isso não quero significar apenas a abstinência física, nem a privação de tudo o que paciente deseja, pois talvez nenhuma pessoa enferma pudesse tolerar isso.” Página 182.

Segundo Freud, se o analista cedesse aos encantos da paciente, retribuindo-lhe o amor ofertado, ocorreria que a paciente acalmaria o objetivo dela, mas ele nunca acalmaria o seu. Seria um triunfo para ela, mas uma derrota para o tratamento. (Página 185.) “Para o médico, motivos éticos unem-se aos técnicos para impedi-lo de dar à paciente seu amor”. Página 186.


“O público leigo, sobre cuja atitude em relação à psicanálise falei no inicio, indubitavelmente apossar-se-á deste debate do amor transferencial como mais outra oportunidade de dirigir a atenção do mundo para o sério perigo desse método terapêutico.” Página 187. 

Indicação de série que aborda bastante o assunto: Sessões de terapia.

domingo, 29 de setembro de 2013

Transferência sob o olhar de Greenson

GREENSON,R.Ralph. A Técnica e a Prática da Psicanálise. Vol.1. Rio de Janeiro: Imago, 1981.
Retirado da aula de psicanálise. Professor, Dr. Heidrich.
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TRANSFERÊNCIA



Cap. 3

 fenômeno inconsciente, “é uma repetição, uma nova edição de um relacionamento objetal antigo”. Sua “característica principal é a vivência de sentimentos – em relação a uma pessoa – que não está endereçada àquela pessoa e que, na verdade, está a outra. […] uma pessoa no presente é reativada como se fosse uma pessoa do passado”(p.168). Ou seja, “é uma repetição e é inadequada”(p.171).

Transferência…
“Pode conter qualquer dos componentes de uma relação objetal”: […] vivenciada como sentimentos, impulsos, desejos, medos, fantasias, atitudes, idéias ou defesas contra isso tudo”(p.168).
“As pessoas que são as fontes originais das reações transferenciais são as pessoas importantes e significativas da infância primitiva (Freud,1912ª,p.104)” (p.168).

Ocorre dentro e fora da análise, tanto nos neuróticos e psicóticos quanto nas pessoas saudáveis.

Duplo poder (p.167)

“instrumento de valor insubstituível”: oportuniza a investigação do passado e o inconsciente.
 “fonte dos maiores perigos”: desperta resistências que são obstáculos ao trabalho do analista.

“Reações Transferenciais”

GREENSON prefere usar o termo “Reações Transferenciais”, uma vez que considera os fenômenos transferenciais como “muitos, múltiplos e variados”(p.168).
São sempre inadequadas no contexto atual, embora adequadas na situação do passado.
Como repetições, podem estar a serviço de “oportunidades tardias para a satisfação” ou “como uma defesa contra a recordação”. “A repetição pode ser uma cópia exata do passado ou […] uma versão modificada […] em direção à satisfação do desejo.”(p.169).
A situação analítica…
facilita as reações transferenciais, utilizando-as para “interpretação e reconstrução”.
Os neuróticos, os frustrados e as pessoas infelizes são propensos às reações transferenciais, sendo o analista um alvo ideal (bem como as pessoas importantes na vida do paciente). 

Quadro clínico: características gerais (p.171)

Inadequação: “a inadequação de uma reação a uma situação atual é o primeiro sinal de que a pessoa que desencadeia a reação não é o objeto verdadeiro ou decisivo. Ela indica que a reação, provavelmente, pertence e se encaixa num objeto no passado” (p.173).
Características…
Intensidade: “Em geral, as reações emocionais intensas em relação ao analista são indicativas de transferência.” Há, também, a possibilidade de reação realista do paciente, exemplo: quando o analista dorme na sessão – Porém, é preciso considerar a possibilidade de que “haja sempre um núcleo transferencial além da superestrutura realista”.
A ausência de reações também é um sinal seguro de transferência. O paciente pode estar tendo reações mas as está controlando por que está acanhado ou com medo”(p.174). “Ausência prolongada de sentimentos, pensamentos ou fantasias sobre o analista é um fenômeno transferencial, uma resistência transferencial” (p.175).
Ambivalência
 “todas as reações transferenciais se caracterizam pela ambivalência, a coexistência de sentimentos opostos. […] um aspecto do sentimento é inconsciente. […] A ambivalência pode ser facilmente detectada quando os sentimentos envolvidos são inconstantes e mudam inesperadamente”. “[…] na transferência também podem ocorrer reações pré-ambivalentes. A figura do analista é dividida num objeto bom e num objeto mau […]. Quando os pacientes que reagem desta maneira – e eles sempre são os mais regredidos – conseguem perceber a ambivalência que sentem pelo mesmo objeto unitário, isso demonstra que houve um progresso enorme” (p.176).
Inconstância
“Os sentimentos transferenciais são, em geral, inconstantes, irregulares e excêntricos. Principalmente no começo da análise. Glover (1955) chamou de ‘reações transferenciais ‘flutuantes’.”(p.177).
Tenacidade: “Enquanto as reações esporádicas costumam aparecer no início da análise, as reações rígidas e prolongadas têm mais probabilidade de surgir nas fases mais avançadas” (não é regra). […] A tenacidade e a falta de espontaneidade são sinais de reações transferenciais. […] são devidas a uma combinação de defesa inconsciente e satisfação instintual.” (p.179).

“É a inadequação em termos de intensidade, ambivalência, inconstância ou tenacidade que mostra que a transferência está em ação.” (p.180).

O Relacionamento Real entre Paciente e Analista (p.240).  


“As reações transferenciais e a aliança de trabalho são, clinicamente, as duas variedades mais importantes de relações objetais que ocorrem na situação analítica”.

No decorrer da análise também surge um ‘relacionamento real’ entre paciente e analista:

comparado com o termo transferência (irreal, distorcido, inadequado), real pode significar realista ou “não-distorcido”. “Pode também se referir a genuíno, autêntico, verdadeiro…”

O termo Real será usado para “me referir ao relacionamento realista e genuíno entre analista e paciente”.

“Tanto no paciente como no analista, as reações transferenciais são irreais e inadequadas mas são genuínas, são verdadeiramente sentidas. Em ambos, a aliança de trabalho é realista e adequada mas é um artifício da situação de tratamento. Em ambos, o relacionamento é genuíno e real. O paciente utiliza a aliança de trabalho a fim de entender o ponto de vista do analista mas suas respostas transferenciais tomam a dianteira se aparecerem. No analista, a aliança de trabalho toma a dianteira sobre todas as outras respostas diretas ao paciente” (p.240-241). 

“O comportamento do analista, de firme aceitação e tolerância, sua busca constante de compreensão, sua franqueza, objetivo terapêutico e sua reserva funcionam como o núcleo sobre o qual o paciente constrói um relacionamento objetal realista. Estes traços – dignos de confiança – do analista, induzem o paciente a estabelecer as diversas identificações que se tornam o âmago da aliança de trabalho” (p.242).
Para uma aliança de trabalho…


O analista deve ser uma pessoa que pode ter empatia e sentir compaixão sinceramente e mesmo assim manter uma reserva. Às vezes, é preciso causar sofrimento. Mas o tratamento psicanalítico não pode ser feito num ambiente de austeridade constante, distanciamento gelado ou euforia prolongada” (p.245).
As reações contratransferenciais…


“devem ser detectadas e controladas. As reações violentas e realista também devem ser controladas, a natureza de tais reações talvez indique a possibilidade de ter selecionado um paciente com quem não consegue trabalhar”(p.246).
As reações transferenciais…


No paciente, “predominam na longa fase intermediária da análise. O relacionamento real fica em primeiro plano no início e torna a ficar em evidência na fase final. A aliança de trabalho se desenvolve lá para o final da fase introdutória mas recua periodicamente até o paciente se aproximar da fase final do tratamento”.(p.246).


No analista, “a aliança de trabalho deve predominar do começo ao fim. A contratransferência deve ficar sempre em segundo plano. O relacionamento real deve ficar mais livre somente na fase final” (p.246).

Reflexões para psicoterapeutas, aspirantes e curiosos


FORMAÇÃO - Capítulo 5.


“Se você quer ser psicoterapeuta, o essencial de sua formação acontecerá depois da faculdade ou, quem sabe, durante seus estudos. De qualquer forma, se dará fora da academia” (p.55).
“Uma peça chave da formação de um psicoterapeuta é o tratamento ao qual ele mesmo se submete. […} espera-se que, nesta experiência, o futuro terapeuta se depare com a complexidade de suas motivações, sintomas e fantasias conscientes e inconscientes. […] não há melhor introdução à variedade do sofrimento humano do que a descoberta de que, em algum canto de seus pensamentos, ele pode encontrar palavras, lembranças, razões, visões e pensamentos parecidos com aqueles que afetam, agitam ou mesmo enlouquecem seus pacientes” (p.55-56).

“Espera-se também que, nesse emaranhado, o terapeuta escolha um fio e o percorra detalhadamente, lendo e estudando”. Deve atentar, no entanto, que “o estudo universitário não é exatamente equivalente ao estudo proporcionado pelos institutos de formação. A compreensão dos textos não é a mesma. Há uma diferença relevante entre ler como estudante, que deve dar conta do que aprendeu , e ler como terapeuta em formação, que interpreta os textos a partir da experiência singular de sua própria terapia ou análise” (p.56-57).

      É importante tomar cuidado…

“Formações unívocas, ligadas à doutrina de uma instituição só, ganhariam em rigor, mas perderiam em complexidade e em liberdade”. Sobre a liberdade da qual fala: “acho que um pouco de formação em terapia cognitiva ou sistêmica seria útil para um psicoterapeuta motivacional. A grande maioria de meus colegas psicanalistas achará que essa afirmação é um disparate” (p. 58-59). 
     
      Indispensável para um psicoterapeuta

“tenha instrumentos diagnósticos para não confundir, se possível, uma amnésia histérica com o começo de uma arteriosclerose ou de um Alzheimer e para se lembrar que uma depressão pode ser o efeito de uma insuficiência de hormônio da tireóide. Na suspeita, é bom encaminhar o paciente para um check-up neurológico, vascular e endocrinológico” (p.61).
“tenha um conhecimento dos princípios ativos dos remédios psicotrópicos mais comuns” (p.61).

Indispensável para um psicoterapeuta

“conheça os princípios diagnósticos de Manual Estatístico Diagnóstico (DSM) adotado pela Organização Mundial da Saúde” (p.61)
“necessário, a meu ver, que um psicoterapeuta passe por uma experiência efetiva e consistente com pacientes psicóticos e, se possível, com toxicômanos. Os estágios clínicos universitários respondem a essa necessidade” (p.62).

Sobre a formação em psicologia clínica ou psiquiatria para um psicoterapeuta

“quem não passa pelo ensino clínico universitário, em geral, forma-se só e exclusivamente na orientação específica da instituição que escolheu.”
“[…] medindo cuidadosamente as palavras, uma formação policiada para ficar circunscrita a uma prática só e ao ensino que lhe corresponde está levando gerações de terapeutas e analistas a valorizar não o compromisso com os pacientes, mas a reprodução e preservação da doutrina na qual se formaram”. (grifo Dr. Gerson Heidrich)

Por fim…

A orientação terapêutica na qual você se formou ou está se formando, minha jovem amiga, não é uma ideologia, nem uma fé na qual seria preciso que você acreditasse, nem uma espécie de dívida que você contraiu com seus mestres e que a forçaria a se fazer seu repetidor e arauto fiel” (p.64-65).
Ou seja, porta voz, mensageiro…

Capítulo 6:

CURAR OU NÃO CURAR
Sobre vários colegas psicanalistas…

“não aceitam de jeito nenhum que a psicanálise seja uma psicoterapia; recusam a idéia de que o psicanalista se proponha a curar, de uma maneira ou de outra, o sofrimento de seus pacientes.” “[…] reservas bem justificadas quanto aos efeitos da vontade e da pressa de curar” (p.69).

Argumentos para desconfiar da idéia de que a psicanálise seria uma forma de terapia…

“Se o terapeuta estiver com pressa de agir, acreditará que a queixa apresentada (com a explicação que a acompanha) diz mesmo o essencial do que atormenta o paciente. E tentará imediatamente combater o sintoma ou ajudar na solução do dilema. Neste caso, quase sempre, o sintoma e o dilema apenas se deslocarão, migrarão alhures, pois o sofrimento psíquico é como a massinha de modelar de nossa infância; você não a quer num determinado quartinho da casa da boneca, empurra com força, consegue deslocá-la, mas ela não sumiu, apenas se insinuou pelas frestas e reaparece no quarto ao lado” (p.70).

Mais argumentos….

As definições tradicionais dizem “que curar significa restabelecer a normalidade funcional ou, então, levar o sujeito de volta a seu estado anterior à doença.” No entanto, “nosso ideal de normalidade é o estado em que um sujeito se permite realizar suas potencialidades, ou seja, estado em que nada impede que alguém viva plenamente o que lhe é possível nos limites impostos por sua história e sua constituição. Se a normalidade for definida assim, ela pode ser perfeitamente o alvo de nossas curas” (p.72-73).
“Uma psicoterapia é uma experiência que transforma; pode-se sair dela sem o sofrimento do qual a gente se queixava inicialmente, mas ao custo de uma mudança. Na saída, não somos os mesmos sem dor; somos outros, diferentes” (p.73).


Paciente ou analisando/analisante…

“Há meios psicanalíticos em que a palavra ‘paciente’ é malvista. Paciente é o chato que se queixa e quer ser curado, enquanto quem faz análise é ‘analisando’ ou ‘analisante’, não paciente, pois ele deve esperar análise e não cura” (p.79).

Calligaris considera:


“A psicanálise me interessa por sua capacidade de transformar as vidas e atenuar a dor. Se tenho uma reserva diante da palavra ‘paciente’, é porque espero que todos sejamos impacientes com o sofrimento desnecessário que, eventualmente, estraga nossos dias”(p.79).


CALLIGARIS, Contardo.
Cartas a um jovem terapeuta: reflexões para psicoterapeutas, aspirantes e curiosos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.

Calligaris Nasceu na Itália, formou-se na França e vive entre Brasil (São Paulo) e Estados Unidos
(Nova York). Doutor em psicologia, psicanalista, entre outras formações.